O mercado de trabalho está a mudar. A grande velocidade. E, engane-se, quem pensa que vai voltar atrás. Este, à semelhança do mercado da saúde, é um ponto sem retorno. Decidi falar sobre o tema porque é recorrente nas conversas que tenho com os meus clientes e amigos (muitos deles do setor), o que permite ter uma visão dos dois lados.
Pode até pensar que estou a exagerar, mas basta olhar para o passado (ah… o passado que nos dá sempre pistas do que vem a seguir) para entender que assim será. Em 2007, quando o Steve Jobs lançou o iphone, muitos se apressaram a dizer que não ia funcionar e que não era preciso. Hoje, passados 15 anos, ninguém se imagina a viver sem um equipamento touch e a maioria destas pessoas fazem parte dos que à data disseram que nunca iam utilizar.
Assim sendo, mais vale olhar para o problema de frente. Vivemos hoje, provavelmente, a maior crise de recursos humanos na farmácia. “Mas porquê? Há farmacêuticos em número insuficiente?” A resposta é NÃO!
Existem, em Portugal, 8 faculdades a ministrar o MICF (Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticos) que todos os anos colocam no mercado um número considerável de farmacêuticos. Então porque é tão difícil contratar e reter os farmacêuticos na farmácia comunitária?
Vou destacar as 4 áreas que mais são focadas: Ouvir mais/Dar feedback, Valorização/Progressão, Dinamismo/Flexibilidade e Atividade Farmacêutica. Nelas não incluo o salário, até porque, do que tenho visto e ouvido, não é “A” questão determinante. E porquê? Porque quando a oferta de oportunidades excede, em muito, o número de recursos humanos dispostos a integrar a farmácia comunitária, os valores sobem. Não é farmácia, é economês. Além disso, há muitos farmacêuticos que escolhem outras áreas, mesmo indo auferir menos do que na farmácia comunitária. E isto diz muito sobre o tema!
Ouvir mais/Dar feedback: invariavelmente, as frases “não querem saber do que pensamos”, “farto-me de dar sugestões e dizem: - sim, sim… mas depois fica tudo igual” ou “nem sei se estou a corresponder às expectativas, ninguém diz nada”, são ditas em conversa. Embora transversal a todos os setores de atividade, estamos a falar das farmácias e como tal vamos olhar para estas em particular. Esta é uma responsabilidade da gestão. Ouvir mais não é “esvaziar o balão” ou “dar uma palmadinha nas costas” e pensar que vai ficar tudo bem. Tanto não fica, que os níveis de retenção são preocupantes. Ouvir mais é essencial para perceber as “dores” dos que fazem parte da equipa. É ouvir que sugestões têm e questionar o porquê do assunto estar a ser trazido. Ouvir mais é um 2 em 1: além de nos dar informação relativo ao estado anímico e motivacional da equipa também nos dá informação sobre o que está a acontecer no mercado específico da “minha” farmácia. Até porque é a equipa que está no atendimento direto ao público e lida todos os dias com os clientes. Dar feedback é a outra vertente desta área. Dar feedback não é fazer uma reunião de equipa mensal, onde o tema de discussão é se os objetivos foram ou não cumpridos. Dar feedback também não são as reuniões semanais que se fazem para alinhar a equipa quanto ao que se vai passar durante aquela semana. Dar feedback é reunir, individualmente, com cada elemento da equipa e, entre outras coisas, comunicar se a pessoa está a corresponder ou não aos padrões que cada um considera que são os necessários. É dizer se estamos satisfeitos ou não e porquê. É dizer o que esperamos daquela pessoa. É questionar se há algum motivo para que tal esteja a acontecer, em caso negativo. É dar soluções à pessoa e mostrar o caminho para continuar a evoluir e/ou melhorar. Obviamente que o tempo não é inesgotável e também não sou apoiante da “reunite aguda”, mas estas duas vertentes podem acontecer ao mesmo tempo, por exemplo, uma vez por trimestre, quando comunicamos o cumprimento dos objetivos, se existirem. Se não existirem, deve acontecer na mesma. Ninguém pode melhorar se não souber que não está a corresponder. E a esperança aqui não funciona. Ou se fala ou a pessoa não adivinha. “Ah mas eu não tenho jeito, não sei fazer isso”. É, normalmente, sinónimo de tenho medo, nunca fiz, não gosto de enfrentar as pessoas. É verdade que o currículo do curso não ensina a lidar com pessoas (como não ensina outras tantas coisas indispensáveis, mas isso era tema para um só artigo), mas isso não deve ser uma desculpa. Atualmente, através de cursos online, é possível aprender, rapidamente, técnicas para ouvir e dar feedback e que ajudam a coloca-las em prática. E depois… a prática faz com que comece a ser uma mais fácil e simples e benéfica para ambas as partes: gestores e equipa.
Valorização/Progressão: a progressão tem, por si só, implícita a valorização. Mas a valorização, não tem de estar, necessariamente, associada a uma progressão. Porque nem todos almejam uma progressão que implica mais trabalho e responsabilidade, querendo manter o que fazem sem deixar de ser vistos. A geração Millennials (1981-1996) e Z (1997-2012), aquelas que permitiram fazer uma renovação da classe e que vão continuar em maioria nos próximos tempos, foi fortemente estimulado o sentido de carreira, chegar ao topo ou ser o melhor. Tal faz com que tenham como grandes objetivos quando integram uma empresa, a progressão e a valorização. Algo a que não estávamos habituados em gerações anteriores que “tinham um trabalho para a vida” e nas quais o desejo de querer “sempre mais” não era tão notório. Não quero com isto dizer que era inexistente. Também é verdade que a progressão em farmácia comunitária é algo difícil de definir. Se olharmos para a tabela de progressão farmacêutica, estamos a falar de períodos de 4 anos entre cada grau de farmacêutico, totalizando 16 anos até que possa ascender a farmacêutico de grau I ou diretor técnico. Ao dia em que escrevo este artigo, penso que não é demais dizer que toda ela terá de ser revista. Muitos farmacêuticos atingem a direção técnica antes dos 30 anos. Algum problema em relação a isto? Não! Desde que tenham as qualificações e aptidões para resolver as questões decorrentes do cargo, técnica e cientificamente. Cai, então, por terra esta ideia de progressão na farmácia de acordo com a tabela em vigor. Muitas vezes me perguntam “o que é progressão na farmácia comunitária”. Este é um conceito que está muito pouco claro, tanto para os gestores como os farmacêuticos que lá trabalham ou pensam trabalhar. E talvez esteja aqui um dos problemas. Um farmacêutico, ao escolher farmácia comunitária, não tem noção do que é progressão. Quando escolhe outra área de atuação sabe, pelo menos, a estrutura hierárquica e até onde pode aspirar. Então como podemos colocar em prática a valorização/progressão? Criar diferenciação. Porque não criar especializações para os farmacêuticos? Responsabilizar por uma área da farmácia, como por exemplo, a dinamização dos serviços farmacêuticos ou da formação? Automaticamente é criada a noção de valorização por atribuição de uma diferenciação que implica maior responsabilidade. Pode ou não ser acompanhada de uma progressão salarial ou na hierarquia, mas é certamente uma assunção de que o trabalho que está a ser feito pela pessoa está a ser reconhecido. Neste ponto, faz sentido que as farmácias e os farmacêuticos exijam uma clarificação às entidades que têm competência para tal, ANF (Associação Nacional das Farmácias) e Ordem dos Farmacêuticos, respetivamente. E porque não pedir apoio às referidas entidades, ao nível de medidas e comunicação, para tornar a progressão em farmácia comunitária mais clara e atrativa.
Dinamismo/Flexibilidade: é, por ventura, a grande areia na engrenagem no que toca à vontade de integrar ou à retenção de talento na farmácia. Todos os trabalhos rotineiros acarretam também uma grande dose de desmotivação. Se juntarmos à rotina o facto de ter a componente de atendimento ao público (cada vez mais complexa), ainda mais pode aumentar esses níveis. Mas trabalhar na farmácia é rotineiro? É. Atualmente, a grande maioria dos farmacêuticos, em farmácia, “faz balcão” como se diz no meio. “Mas não foi para isso que estudaram? São os especialistas do medicamento”. Eu diria que também foi para isso que estudaram. O farmacêutico comunitário pode e deve fazer muito além do atendimento. E é aqui que entra o dinamismo. Um especialista do medicamento pode e deve fazer PIM (Preparação Individualizada da Medicação). Um especialista do medicamento pode e devem fazer Revisão da Terapêutica. Ambas as atividades carecem de alguém que tenha formação em medicamentos. Os hábitos de saúde estão a alterar-se. Cada vez mais as pessoas tendem a priorizar as prevenção em vez da cura. Basta olhar para os gadgets que controlam o batimento cardíaco, as horas de sono, as calorias e demais níveis. O farmacêutico é também o profissional de promoção e educação para a saúde. Quantas vezes sai da farmácia e vai falar para a comunidade? Quantas vezes desenvolve rastreios das mais diversas áreas de saúde que lhe dão a oportunidade de intervir na comunidade? Quantas ações de saúde cria no seu ecossistema? Infelizmente, muito menos do que se esperaria. A farmácia é também um local que, de acordo com a portaria nº 97/2019, de 9 de abril, presta serviços farmacêuticos de promoção da saúde e do bem-estar dos utentes, como utilização de meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica ou a realização de testes rápido pata rastreios de infeções, incluindo o aconselhamento pré e pós teste. Quantos farmacêuticos fazem testes de despiste de HIV, infeções urinários, infeção por gripe ou por streptococcus no exsudado faríngeo? A oportunidade de ouro já foi dada: a realização de testes COVID-19. Que tenha sido bem aproveitada é o que se deseja. O que tem a flexibilidade a ver com o dinamismo? Tudo. Para organizar, implementar e manter estas atividades, tem de haver flexibilidade para que os farmacêuticos se possam dedicar ao tema, durante o horário de trabalho. Sim! Durante o horário de trabalho. O grande problema para a falta de dinamismo das farmácias não é os recursos não quererem fazer. É considerar que estas dinâmicas têm de ser feitas no horário extra trabalho, porque afinal… trabalhar é “fazer balcão”. Também podemos olhar para a flexibilidade em termos de horários, aquela que é muito valorizada e mais facilmente obtida quando se opta por outra área farmacêutica para trabalhar. Bem…aqui não é um assunto tão fácil. Mas é possível, ainda que pense que não no imediato. As farmácias não estão preparadas para a flexibilidade, quanto mais para o badalado tema atual da semana de quatro dias por semana. Mas a verdade é que em pandemia houve farmácias a trabalhar em espelho. Problema? Equipas curtas e cansaço extremo. Reforço que o dinamismo é um dos fatores no topo da lista quando um farmacêutico escolhe entre farmácia e outras áreas.
Atividade Farmacêutica: muito comparável ao que referi em dinamismo, porque coloquei a tónica do dinamismo nas ações que os farmacêuticos podem e devem fazer. Não considero que atividades como a Black Friday ou outras semelhantes sejam dinamismo. São apenas técnicas de marketing de outras áreas de negócio, aplicadas à farmácia, que em nada são farmacêuticas (porque para produtos farmacêuticos não é aplicável) e que só aumentam, nos farmacêuticos, a frustração por nada ter a ver com as suas funções. E escolhi falar das atividades farmacêuticas antes para agora poder destacar o seguinte e que me parece muito elucidativo. No período pré pandemia, quando se questionava os alunos que iniciavam 1º ano do MICF quem queria fazer carreira em farmácia comunitária, 3 a 4% respondiam positivamente. Em 2022, quando se faz a mesma questão a alunos dos 1º ano, a resposta é de 50%. O que contribuiu para tal? A atividade farmacêutica na realização dos testes da COVID-19 em 2020/2021. Que ilações retiramos daqui? Que os farmacêuticos querem “ser farmacêuticos” a todos os níveis e não apenas “vender caixinhas” (como indicam as aspas, não é uma expressão minha, mas muito dita para se referirem ao que se faz em farmácia comunitária). E ser farmacêutico comunitário implica dinamismo/flexibilidade, ser ouvido/receber feedback e ter valorização/progressão.
Resumindo, o problema dos recursos humanos em farmácia comunitária é real e já dura há algum tempo. Não tem a ver com o valor do salário mas com ausência de outros componentes, tidos como mais importantes pelos farmacêuticos, como o dinamismo, flexibilidade, feedback, valorização, progressão e atividade farmacêutica. E tende a piorar se não quisermos olhar para o problema e pensar que “só que não fique pior, já é bom”.
Esperar que outros, entenda-se as entidades do setor, encontrem a solução mágica e façam o trabalho todo não é a melhor solução. Até porque já se viu que até agora pouco ou nada conseguiram fazer e mudar. A solução passa mesmo por tentativa/erro. Olhar para as várias vertentes e introduzir alterações. A palavra de ordem é aplicar/testar/avaliar.
Acima de tudo, não voltar a ser como aqueles que em 2007 disseram que o iphone não ia resultar ou ser o Tim Cook, de hoje, e dizer que o metaverso* não serve para nada. Porque no fundo, o que o Tim Cook está a dizer é o mesmo que estas pessoas disseram em 2007, quando a empresa da qual é o atual CEO, lançou aquele que é o equipamento que ele hoje vende, o iphone.
* Trata-se de um mundo alternativo onde se pode trabalhar, jogar e conhecer pessoas sem nunca sair de casa. A ascensão deste vasto espaço virtual parece estar a esbater as linhas da realidade.
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