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O ensino de Ciências Farmacêuticas e o mundo empresarial atual: tão perto e tão longe

Inevitavelmente, chegaria o dia em que o tema do artigo seria o (cada vez maior!) distanciamento entre o que é lecionado nas faculdades de Farmácia em Portugal e as necessidades do mundo empresarial. Pese embora que não sendo um problema exclusivo das Ciências Farmacêuticas, faz-se notar fortemente. E aqui reside uma das causas para a diminuição do interesse pela carreira Farmacêutica em geral e pela opção de Farmácia Comunitária em particular.


O nível de produção de informação e os avanços tecnológicos a uma velocidade nunca antes vista geram nas empresas uma necessidade de resposta e adaptação igualmente acelerada, sob pena de perder o comboio da inovação. Evolui, com a mesma agilidade, a formação dada nos currículos académicos dos profissionais que vão estar no mercado de trabalho a curto/médio prazo? Na área da engenharia e gestão, sim. Na área das Ciências Farmacêuticas, não. Se dúvidas houvesse, basta ver a quantidade de farmacêuticos que frequentam formação para executivos à procura de valências que o mundo corporativo lhes exige atualmente, mas que não tiveram na sua formação de base.


Em 2011, enquanto membro da APEF (Associação Portuguesa de Estudantes de Farmácia), contribuí para o estudo do currículo do Mestrado Integrado em Ciências Farmacêuticas (MICF). Já na altura, as conclusões revelavam uma dissociação entre o que era lecionado nas faculdades e o que o mercado pedia. Passados 12 anos, e ao falar com recém-licenciados e estudantes atuais do MICF, percebo que tudo se mantém e que as queixas são (exatamente!) as mesmas. Pergunto-me como é que não havemos de estar numa grave crise de atração de novos estudantes para o curso e, por conseguinte, de farmacêuticos para a farmácia comunitária?


Comecei este artigo por dizer que a evolução e a capacidade de adaptação são fundamentais para não sermos eliminados pela seleção natural do mercado. Constatamos que em 12 anos muito pouco ou nada mudou. Não é difícil perceber como chegámos até aqui. Podem até dizer-me que estou a ser demasiado fatalista e que aconteceram mudanças. Pois bem… cosmética não é mudança. É apenas uma forma de dizer que se fez qualquer coisa e assim descartar responsabilidades. Caso contrário, o número de candidatos a entrar no Curso de Ciências Farmacêuticas não estava a diminuir consistentemente a cada ano que passa.


Quantas vezes ouvimos alguém dizer "não aplico nada do que aprendi na faculdade no meu trabalho" ou "não saí da faculdade preparado para o que vim encontrar cá fora”? E porque é que acontece com tanta frequência? A verdade é que os programas curriculares das faculdades estão, francamente, desatualizados e desajustados face à realidade.


Todos sabemos que uma mudança de fundo que se implemente agora só terá resultados daqui a alguns anos. Se vejo pessoas a alertar para a necessidade de mudança? Sim. Se vejo essa mudança a acontecer? Não. Como já vem sendo hábito, ouvimos muitas vezes o “temos de mudar”, “devemos repensar”, “precisamos de ser mais atrativos”… Mas na verdade, pouco vemos passar da teoria à prática. Campanhas de sensibilização são importantes, mas “vender” algo sem alterar as causas que nos levam a ter de fazer estas campanhas é um risco. O risco de gorar as expectativas de quem nelas acreditou é enorme e, depois, como se diz em bom português, “é pior a emenda que o soneto”.


Onde está então o grande desafio? Em promover e estabelecer colaboração efetiva entre a academia e o mundo corporativo, onde se incluem as Farmácias.


Poderiam até pensar, pelo que escrevi até agora, que iria colocar toda a responsabilidade de mudança nas entidades de ensino. Mas não faz qualquer sentido que assim fosse. Se pensarmos bem, chegámos até aqui precisamente porque estas definiram sempre de forma unilateral o currículo formativo dos Farmacêuticos. A questão primordial é a “paragem no tempo”. Este currículo, para as necessidades do mercado há 20 anos atrás, era suficiente. Contudo, para as necessidades atuais, e acima de tudo para as futuras, é escasso. Se assim é, porque é que o mundo corporativo não pede/exige outras valências à academia? Na verdade, se eu estiver a fazer algo que penso estar certo, mas ninguém me tiver dito que preciso de entregar algo diferente, por norma não irei alterar uma vírgula ao que já faço. Não sou só eu. É um comportamento natural a todos os seres humanos.


Pergunto quantas vezes a indústria, as Farmácias e as demais áreas da Farmácia se juntaram à academia para um debate franco de colaboração? Não tenho dados que me permitam responder com exatidão a esta questão (se é que os há) mas, pelo estado da arte, muito poucas. Participar nas feiras de emprego das faculdades ou partilhar o que se faz no dia a dia das empresas, nas faculdades, não é cooperação. São atividades necessárias mas que não passam de operações marketing, cujo sucesso em muito depende do entusiasmo das pessoas que as realizam.


Posso até imaginar alguns pensamentos como “mas o currículo do curso obedece a normas europeias”, “para o curso ser reconhecido temos de obedecer a certas unidades curriculares e ECTS”… Tudo isto é verdade. Mas o que se transmite em cada uma dessas unidades curriculares, como se escolhe ensinar e que exercícios do mundo real se podem utilizar para enriquecer a formação é a chave da mudança. Se há unidades curriculares que são mais estáticas quanto ao surgimento de informação nova, outras há que estão sempre a sofrer alterações. Mas se a informação é passada com os mesmos slides desde há anos, se os exercícios são os mesmos que estão em apontamentos que passam de ano para ano, se para fazer a unidade curricular basta ler resumos, não precisando de trabalhar o raciocínio e a adaptação ao mundo real, como se quer evoluir e responder às necessidades atuais?


Mais do que transferência de conhecimento, a universidade deve ser uma fonte de transformação do conhecimento, orientada para o valor e inovação. E essa só é possível com a partilha entre academia e mundo empresarial. Portugal é dos poucos países que ainda mantém nos quadros docentes das faculdades os chamados “inbreed”, ou seja, docentes que fazem a licenciatura, o mestrado e o doutoramento sempre na universidade, sem que tenham tido qualquer experiência no mundo empresarial. Em momento algum está em causa o conhecimento que têm, mas sim a adaptação às necessidades atuais do mercado. Perante esta realidade, como se pode fazer um programa curricular adaptado à realidade se não se conhece a realidade?


A roda já está inventada, que é como quem diz, a solução. Nem sempre precisamos de inovar. Precisamos de ver o que já se faz bem e adaptar à nossa realidade. E não precisamos de ir lá fora. Olhemos para as colaborações entre empresas e instituições de ensino como o Técnico de Lisboa ou a Universidade Nova com a banca, os seguros, as telecomunicações, a distribuição, entre outras. Os ganhos são mais que muitos. Por um lado, esta colaboração permite às empresas identificar e desenvolver mais e melhores talentos para integrar os seus quadros e acelerar a inovação interna de produtos e serviços que, de outra forma, levariam muito mais tempo, usufruindo dos meios e contribuição científica das faculdades. Por sua vez, as faculdades beneficiam do contacto direto com as empresas, na medida em que além de melhor adaptarem os seus currículos às necessidades atuais, conseguem proporcionar melhores ferramentas e condições de trabalho a todos os alunos e docentes.


Utopia? Não. A prová-lo está a formação para executivos que tem cada vez mais participação e sucesso. É prática e com programas centrados nas necessidades atuais e com docentes que colaboram com o mundo empresarial. Se a formação para executivos é feita nas universidades, se já foi feito o caminho ligado às empresas, fica a questão: porque é tão difícil transpor para os cursos de formação? Ser um curso da área da saúde não deve nem pode ser desculpa. Pelo contrário, a saúde é uma das áreas a sofrer maior transformação.


Como digo sempre, mudar é possível, basta querer!

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