Assinala-se, no próximo mês de outubro, um ano de implementação da “Renovação” da Terapêutica Crónica nas Farmácias. Tempo suficiente para fazer um balanço e perceber os aspetos positivos e os que requerem intervenção. Irei colocar “renovação” entre aspas ao longo do artigo sempre que me referir à renovação que foi anunciada há um ano.
O que se passou a fazer não é renovação da terapêutica. A renovação da terapêutica pelo farmacêutico pressupõe que o mesmo, mediante protocolos acordados previamente e que, em alguns casos podem implicar medição de parâmetros, revalida a prescrição sem necessidade de deslocação ao médico para obtenção de nova prescrição médica. Não é, de todo, o que acontece.
À boa maneira portuguesa, esta novidade, que há muito pecava por tardia, foi anunciada com pompa e circunstância. Aquele barulho das luzes habitualmente utilizado quando aquilo que se apresenta não corresponde ao que se comunica.
Confesso que não entendo esta necessidade tão portuguesa de anunciar em grande alguma coisa, quando na realidade, depois de tudo bem “espremido”, tem muito pouco sumo. Talvez seja deste peso ancestral de sermos um país pequeno, mas que almeja ser grande. E bem, porque temos acesso à maioria do conhecimento que existe lá fora.
Pessoalmente, sou apologista de fazer e obter resultados primeiro e depois fazer o “barulho” todo que for necessário. Quer me parecer que aqui se inverteu, mais uma vez, a ordem natural das coisas: primeiro é-se anunciada a grande conquista e depois vai-se atrás dos resultados. Se eles aparecem, passa a ser algo natural das Farmácias, que respondem sempre. Se os resultados não aparecem, criam-se grupos de trabalho para estudar o que se pode melhorar, sem nunca ficarmos a conhecer bem a dimensão do sucesso ou do “fracasso” que foi a dita novidade.
Como qualquer farmacêutico que vê os serviços prestados na farmácia, por farmacêuticos e não farmacêuticos, como futuro, congratulei esta nova conquista. É algo que já se faz em muitos países pelo mundo fora. O meu entusiasmo inicial (e, o da larga maioria, dos farmacêuticos) rapidamente esmoreceu quando nos apercebemos que afinal a dita “renovação” não passava de pouco mais que cosmética. É nestas situações que apresentar algo como o que realmente é, e não aquilo que queremos que seja, era o aconselhável.
Vejamos o que mudou neste primeiro ano de implementação de “renovação” da terapêutica crónica, em Portugal. Desde a comunicação com o médico, passando pela adesão à terapêutica ou pela diminuição da sobrecarga dos cuidados primários, tudo está igual a antes. Infelizmente, perdeu-se um ano de verdadeira implementação da renovação terapêutica crónica.
As notas terapêuticas são um grande passo na comunicação com o médico assistente. Se funcionarem! Tal não se verifica. Não conheço ninguém que tenha feito uma nota terapêutica e que tenha obtido resposta do médico. Aceito que alguém tenha uma experiência diferente, mas tenho as minhas fundadas dúvidas. Mas antes de dar resposta, é preciso que o sistema onde as mesmas são feitas funcione, o que muitas vezes não acontece. Não estou a alocar culpas a alguém em concreto, mas a verdade é que tudo começou mal desde o início. Questiono-me se houve formação suficiente para perceber como funciona o sistema, ou se há notificações aos médicos, por exemplo. É sobejamente conhecida a dificuldade dos médicos em atender a todas as solicitações e, se não tenho um sistema de alerta de notificações, é natural que não vão estar a abrir as fichas dos milhares de doentes que têm a seu cargo. Todos nós sabemos que a informática faz maravilhas, mas até estar operacional fazemos o caminho das pedras. Aqui não seria diferente, menos para quem decidiu que seria benéfico anunciá-lo como facto consumado.
Se olharmos para adesão à terapêutica, penso ser difícil correlacionar um hipotético aumento com a introdução da “renovação” da terapêutica crónica implementada. Nada passou a ser feito de forma diferente. O farmacêutico não acompanha todos os doentes em gabinete antes da dispensa, não avalia parâmetros nas ocasiões em que seja necessário ou tão pouco sabe se o doente está controlado. Sem estes dados, não se podem tirar quaisquer conclusões. E mais, o número de embalagens dispensadas não pode ser diretamente correlacionável. Maior prova de que não funcionou é a defesa da introdução de programas de acompanhamento farmacêutico, defendida pelo grupo de trabalho criado pela Ordem dos Farmacêuticos e do qual a Associação Nacional das Farmácias faz parte. Estamos perante duas hipóteses: ou se sabia de antemão que não se tratava de uma verdadeira renovação da terapêutica e, mesmo assim, comunicou-se como tal, porque era preciso mostrar que se estava a fazer alguma coisa, ou então acreditou-se mesmo que alguma coisa ia mudar, continuando a fazer o mesmo de sempre. Como não acredito em unicórnios, creio ter sido a primeira.
Passemos então à diminuição da sobrecarga dos cuidados primários. Será mesmo? Até coloco a hipótese de se verificar, mas tal acontece porque os médicos começaram a poder fazer prescrição com validade de 12 meses. Obviamente que com esta medida as pessoas vão menos vezes ao médico, não por qualquer intervenção da farmácia ou farmacêutico. Até porque todos sabemos que este sistema já existia antes, com as ditas vendas suspensas. Acontece que aqui a farmácia beneficia (e bem!) de ter o seu receituário mais atualizado e, com isso, consegue garantir um melhor funcionamento da farmácia.
Gostava, verdadeiramente, passado um ano, estar a escrever este artigo e estar a falar do quanto conseguimos evoluir enquanto país e classe. Pelo que descrevo anteriormente, é fácil de perceber que não foi o que aconteceu. Não tenho quaisquer dúvidas que o caminho é por aqui. Só poderá ser, a bem da sustentabilidade do SNS e das farmácias.
Não podemos é querer resultados diferentes a fazer exatamente o mesmo de sempre e, a verdade, é que nesta “renovação” da terapêutica crónica faz-se exatamente o mesmo, mas debaixo de um chapéu com um nome sexy. Foi notório, desde muito cedo, que a “renovação” da terapêutica crónica pomposamente anunciada era uma saco cheio de ar. Teria sido melhor ser honesto na comunicação e chamar-lhe fase de pré-renovação da terapêutica crónica e não a 1ª fase da “renovação” da terapêutica crónica. Pode ser um jogo de palavras, mas que seja verdadeiro e não crie mais expectativas numa classe já de si cansada de “mais do mesmo”.
Resumindo, menos barulho das luzes e mais resultados. Não basta dizer que se faz. É preciso mesmo fazer, porque só assim vamos ter resultados concretos para apresentar e ser reconhecidos pelos pares. Não duvido que lá iremos chegar. Até lá, mais transparência, por favor.
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